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Metáforas que silenciam vítimas - Uma questão animal

  • Foto do escritor: Coletivo Noéli
    Coletivo Noéli
  • 30 de jun. de 2020
  • 4 min de leitura

Em tempos de crise sanitária mundial e crise política brasileira, muito se falou em mudanças para o futuro, uma espécie de esperança de conscientização humana coletiva nas relações com o planeta de maneira geral. Desde a convivência na primeira instituição humana, a saber, a família, até o relacionamento em plano macro, o planeta Terra (afinal, é neste planeta em que moramos e não há alternativa, mesmo que instalem centenas de plataformas em Marte), o novo vírus surgiu como uma mensagem de que não importa o tamanho da arrogância do ser humano em pretender se afastar da Natureza, pois Ela sempre se saiu muito bem como nossa professora.

Diariamente, o ser humano brinca de experimentações, julga a Terra como um grande laboratório de recursos inesgotáveis e, quando vê as consequências de sua euforia sobre a Natureza, tem a oportunidade de voltar atrás e curvar-se diante da Mãe ou então de apoderar-se cada vez mais de sua presunção. Contudo, é impossível lutar contra a Natureza sem fazer guerra a si mesmo, pensamento de Regina Schöpke com o qual não só concordo como defendo plenamente. Este antropocentrismo encerrado em tiranias contra os elementos da Natureza nos tem mostrado resultados extremamente prejudiciais e até mesmo fatais, não apenas para os rios, florestas e animais não-humanos, mas também para nós, animais humanos. Apesar de tais consequências, estamos sempre insistindo, baseados no sonho capitalista, em promover tal destruição e nos apartar da Natureza, algo naturalmente impossível, a não ser que desejemos nossa própria aniquilação. Mesmo assim, até nosso próprio pó volta ao solo.

Podemos até pensar que nós, dentro de nossas casas, não agimos de maneira imoral contra absolutamente nenhum ser vivente. Porém, basta olharmos mais atentamente, por exemplo, às formas de dessensibilização que as grandes indústrias praticam contra os animais não-humanos. Segundo Carol Adams, existem três formas pelas quais os animais se tornam referentes ausentes: de maneira literal, os animais tornam-se ausentes para que a carne exista. O corpo morto substitui o animal vivo. Não há "carne" sem que antes tenha existido e vivido um animal. A segunda forma para que percamos a referência do animal é a forma conceitual. O próprio termo "carne" é mistificado para uma linguagem gastronômica e, ao passo em que os animais passam por uma linha de desmontagem até os frigoríficos, sendo retalhados e fragmentados, perdem seus nomes e suas individualidades, passam a ser designados não mais como vacas, porcos ou galinhas, mas sim como "unidades consumidoras de grãos", "gado", "bacon", "canja"... Desta forma, o consumidor não pensa estar interagindo com um animal na hora da refeição, reduzindo esta relação a um simples e inocente contato com comida. É o que Peter Singer chamará também dubiedade para a criança que, sem decisão consciente, se alimenta dessas proteínas animalizadas (conceito de Sônia T. Felipe), ao passo que demonstra enorme afeto a cães, gatos, bichos de pelúcia e personagens animais de cartoons.

Por último, mas não menos importante e justamente o que eu gostaria de destacar aqui, é a terceira forma pela qual, segundo Carol Adams, os animais se tornam referentes ausentes: a forma metafórica. Experiências humanas se basearam no uso de animais enquanto metáforas:

"Enquanto as mulheres podem se sentir como pedaços de carne (...), os animais são de fato transformados em pedaços de carne. (...) Poderia a própria metáfora ser a roupa íntima para o traje da opressão?" (ADAMS, 2012, pg. 86).

O referente ausente, justamente por estar ausente, faz com que percamos conexões entre grupos oprimidos. O que se quer dizer com isso é que não há real intenção de um questionamento a respeito da violência sofrida pelos animais não-humanos quando usamos essas metáforas, que disseminam o especismo e a objetificação de seres sencientes.

O uso do referente ausente pode ser considerado como o grande instrumento silenciador e violentador de vidas sencientes, mas que não se deixa ser notado como tal.

Então, se vemos, no dia de hoje e numa grande euforia política por conta de nosso atual, criminoso e desastrado presidente (para não falar outras coisas, já que o foco não é esse), se vemos essa mesma euforia na hora de designarmos seus eleitores como "gado", termo que claramente generaliza os animais e os ausenta no uso de sua metáfora, então precisamos concordar que deixamos de lado nosso senso, nos afastamos intelectual e emocionalmente da consideração do sofrimento desses animais não-humanos, para darmos lugar mais uma vez à violência.

Hoje, coincidentemente, é Dia do Boi, dia criado justamente em forma de homenagem à pecuária, essa mesma responsável por 80% do trabalho escravo no Brasil, responsável pela maior parte do desmatamento na Amazônia, pelo genocídio da população indígena, pela emissão de gases de efeito estufa, pela poluição de lençóis freáticos e pela perda da biodiversidade. Essa mesma pela qual hoje utilizamos sem qualquer senso crítico termos como "gado", nos fazendo esquecer da dor desses animais na fila do abate. Ao contrário dos bolsominions, bois e vacas não tiveram poder de escolha e estão entre os cinquenta e seis bilhões de animais que morrem todo ano para saciar a vontade de meia dúzia de cidadãos. Mas ninguém está pensando nisso quando usa esse termo, não é mesmo?

Infelizmente, mesmo o veganismo sendo uma recusa às diversas formas de exploração, e considerando os animais como as maiores vítimas dos homens, poucas são as pessoas que os defendem. Acima de todas as crises, política ou sanitária, vivemos por muito mais tempo uma crise moral.

Libertação animal é libertação humana, mas isso é algo a ser entendido postumamente, infelizmente.


Roberta Bello.

24/04/2020

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