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Ipsis litteris Boca do Inferno

  • Foto do escritor: Coletivo Noéli
    Coletivo Noéli
  • 27 de set. de 2020
  • 10 min de leitura

Sou uma aficionada por qualquer expressão artística. Acredito que as artes somente cumprem seu papel sem falhar quando nossa experiência sensorial acontece de forma pungente por meio delas. Poderia falar sem nunca cansar sobre música; cinema; pinturas; fotografia e literatura. No entanto, meu anseio com este ensaio é fazer uma reflexão mais profunda sobre apenas uma delas: a literatura. A paixão pela língua em sua forma escrita me guia sempre em jornadas literárias muito diversas e quase sempre me elevam a um estado de espírito bastante pensativo. Sabe-se que existe uma profunda conexão entre cultura, sociedade e construtos sociais. Logo, a escrita desenvolve papel fundamental na cristalização de pensamentos, convenções e ações de determinada época.

Dito isso, ao deparar-me com textos literários antigos percebo o reflexo do outrora em tempos hodiernos, principalmente concernente à idealização de um estereótipo de beleza da mulher (branca), apagamento da identidade social das mulheres negras e (re) construção de suas culturas por parte do homem branco – colonizador, heterossexual e europeu. São atitudes e pensamentos cruéis, injustos, de caráter misógino, racistas e excludentes presentes em vários dos cânones nacionais e mundiais. Dessa forma, acredito ser de extrema urgência reinventar a maneira como a literatura é ensinada e abordada. Não compactuo com o pensamento de “varrermos para debaixo do tapete” a feiura presente em diversos versos de aclamados poetas nossos, com a justificativa de que alguns escritos antigos representavam um pensamento que já caiu no ostracismo. Com esse pensamento em mente lancei-me a escrever esta minha reflexão. Não apenas como admiradora da literatura, mas como crítica também. Por isso, faremos um passeio por alguns versos de um dos escritores mais controversos da nossa literatura – Gregório de Matos.



Em minha peregrinação literária deparei-me em algum momento com vários sonetos de Gregório destinados às mulheres. Assim, pude analisar que as suas visões sobre as mulheres divergiam e, por isso, aprofundei minhas análises. Trarei aqui alguns trechos dos sonetos que mais me chocaram e também nos quais ficou mais em evidência a diferença das representações líricas de Gregório às mulheres brancas e às negras. São eles: À mesma D. Ângela”; “Anatomia horrorosa que faz de huma negra chamada Maria Viegas” e “ Huma graciosa mulata filha de outra chamada Maricotta com quem o poeta se tinha divertido, e chamava ao filho do poeta seu marido” – todos eles podem ser lidos na íntegra no site do domínio público. Antes de analisar os versos de Gregório é importante que façamos uma breve viagem sobre a criação – não por nós mesmas – das identidades femininas e seus papéis na sociedade Europeia em meados do século XV até XVIII. Em seguida abordarei como essas visões sobre as mulheres brancas e, por conseguinte das mulheres negras, tiveram influência direta nas produções literárias de Gregório de Matos.



Que a condição feminina sempre foi histórica, cultural e socialmente situada, isso não é grande novidade nem entre as menos estudiosas no assunto, tampouco é para as que vivem na pele os anos de repressão e imposição patriarcal que até hoje sustenta nosso status quo. Nesse sentido, o ser humano mulher sempre foi descrito com convicção pelos homens ao longo dos anos e, foram eles, os que sempre tiveram o poder da última palavra sobre as características que nos qualificam e definem.



Simone de Beauvoir ao refletir sobre a visão que o macho alfa tem sobre a fêmea submissa a ele – e a toda uma sociedade – problematizou vários pensamentos de filósofos ao longo dos anos dos quais nem mesmo Platão saiu ileso às suas críticas. Quando Platão agradeceu aos deuses por ter nascido homem e não mulher sabia exatamente que ao nascer dotado de um falo, em uma sociedade falocêntrica, conferiria a si próprio muitos dos privilégios que seriam negados aos seres nascidos sem. Ao fazer uma análise – mesmo que rápida – sobre a história das mulheres ao longo dos anos, deparamo-nos com as mais absurdas privações; apagamentos sociais; identitários; artísticos e literários. Ainda, pouca ou nenhuma liberdade de expressão! Essas – e outras – mazelas de alguma forma continuam a nos assolar na contemporaneidade.


Nesse sentido, à mulher sempre foi outorgado o papel de coadjuvante perante o mundo das ideias; dos letrados; pensadores; trabalhadores e dentre outros sujeitos sociais preparados para governarem a “política de suas próprias vidas” e a “Política do mundo”. Alegavam muitos doutos que por falta de capacidade racional o que nos restaria era cuidar da maternidade, seguir ideários de beleza impostos pela época e, se alguma mulher fosse instruída, que fosse para ser contemplada em seus dons artísticos (pintura e/ou canto clássicos) como se fossem meros adornos de um ambiente. Continuando sobre a questão da concepção “de mulher” que foi sendo tecida ao longo dos anos, é importante ressaltar que não importava qual função a mulher exerceria, contanto que estivesse a serviço ou disposição do homem.


Por isso, após entender os papéis femininos na estrutura social de várias sociedades anteriores em modelos que são vigentes ainda hoje, vê-se muita lucidez naquela afirmação de Platão acima mencionada, porque de fato, é deveras constrangedor perceber que o alicerce ideológico que indica qual lugar cabe às mulheres foi tecido apenas por homens! Digo ainda que são homens gulosos! Ou seja, não satisfeitos em serem os protagonistas de suas próprias histórias ainda por cima usurparam o nosso protagonismo também! A partir desse pensamento, Beauvoir em sua obra O segundo sexo (1970) fez algumas analogias da vida feminina à escravidão e essa analogia não foi arbitrária.



No entanto, quando Beauvoir advogava em nosso favor, já sabemos que as mulheres negras não estavam incluídas e, por este motivo, é ainda mais complexo falar das representações sociais das negras – seja em quesitos epistemológicos ou artísticos – porque elas foram durante muito tempo silenciadas, suas criações usurpadas (como é o caso da Sister Rosetta, a mãe do Rock n’ Roll) ou retratadas de forma humilhante; servil; animalesca! Para deixar em evidência o apagamento das negras, Djamila Ribeiro traz um dos discursos da abolicionista norte-americana Sojouner Truth, em 1851, nos EUA, no qual fica explícito que elas sempre lutaram pelos seus direitos, mas suas vozes não eram ouvidas nem pelas mulheres brancas, muito menos por homens. Hoje, sabemos que a representatividade das mulheres negras mesmo dentro do movimento feminista ficou durante algum tempo imbuída a um conceito universal de mulher. Logo, a reflexão é que se até mesmo dentro de movimentos guiados por mulheres as negras seguiam lutando contra hierarquias de poder, como bem disse Kilomba “a mulher negra é o outro do outro”, imagina a discrepância da visão dos homens (brancos e europeus) a respeito daquelas que eram duplamente apagadas.



No seu mais famoso livro intitulado “O que é lugar de fala”, Djamila Ribeiro traz ainda, um trecho de um texto de Sueli Carneiro, no qual a ideia central é justamente mostrar que as mulheres negras nunca se enxergaram retratadas nos versos dos poetas como musas, ou nem mesmo como as – hoje não mais tão desejáveis – “rainhas do lar” porque sempre estiveram à margem. A literatura Brasileira e sua crítica possuem uma dívida social enorme com as mulheres, e, ainda maior com as mulheres negras! Por isso, todo esse passeio por questões sociais, de (re)existências das mulheres às injustiças do patriarcado e mais, das mulheres negras por representatividade dentro – e fora – dos movimentos feministas, não está sendo discutido à toa, pois se anseio por estudos literários mais críticos devo sempre abordar essas questões. Caso contrário, cairei novamente no papel da educadora que aprecia literatura, mas não a desafia a mudar, não a critica e aceita passivamente o louvor incontestável a certos escritores e poetas.


Após essa breve explanação sobre as identidades femininas é importante compreendermos que a representação do feminino sempre foi assunto ordinário e produtivo em diversos segmentos, não seria diferente na literatura. Dessa forma, é em um contexto de dualidade que se encontra a mulher barroca do Boca do Inferno: ora mais idealizada, pueril, santa e submissa; ora lasciva, mundana, burlesca, objetivada e digna da ignomínia. Ou melhor, cada mulher para cada situação! Gregório de Matos constitui talvez o nome mais expressivo no Barroco Brasileiro e não é sem mérito. Suas líricas podem a todos encantar quando de seus versos respingam em seu leitor orvalhos do amor sublime. Mas, esse poeta em outro momento, pode deixar-nos atônitos e enojados quando os ares da prepotência racial em seus poemas dedicados às negras e mulatas, inebriam o ar com o nefasto odor da inferiorização de uma etnia frente à outra.


  • Brasileiro Baiano na certidão; não era no intelecto e nos pensamentos. Os anos passados na Europa deixaram em Gregório uma marca que ia além da influência estilística na composição de sonetos e poemas à lá Gôngora e Quevedo; na verdade a Europa construiu em sua mente uma concepção irrefutável de como seria um modelo ideal de governo; país; sociedade; arte; poesia; literatura; religião e também de mulher. Logo, o tão famoso Barroco de Gregório foi muito mais um movimento que se (re) criou através de um continnum discursivo de ideias e conceitos, nascidos no polo artístico Europeu. Sob essa ótica – de um barroco que transpõe barreiras geográficas – Gregório representou por meio de sua lírica “a mulher” que na verdade não era a brasileira em sua essência, mas sim uma idealização pretensamente universal do ser feminino.


Por conseguinte, se existia – ou ainda existe – um ideal de mulher para o poeta, nada mais óbvio do que afirmar que existia também “um tipo de mulher” que não era o ideal. E nesses termos, a produção barroca de Gregório não foi tímida em representar as etnias divergentes das mulheres que em terras Brasilis habitavam. Em um de seus poemas direcionados a sua musa caucasiana “À Mesma D. Angela, o Boca a descreve: “Anjo no nome, Angélica na cara, Isso é ser flor, e Anjo juntamente (...). E quem um Anjo vira tão luzente, Que por seu Deus, o não idolatrara”? . É explicito nesse soneto que ele enaltecia esta dama chamada de Angela a um status divino de beleza que muitíssimo lhe agradava. Logo, as palavras anjo, flor, angelical e luzente só reforçam a visão idealizada de Gregório sobre a mulher branca que deveria ser pura, casta, quase como um ser celeste à espera daquele que viria a ser seu possuidor e único apreciador de sua beleza, graciosidade e sexo. Sendo assim, em Angela vê-se o ideário de esposa.


Vale ressaltar ainda que em vários sonetos de Gregório já percorridos por mim percebi a recorrência de metáforas relacionadas ao brilho da Aurora, neve e sol. Essas palavras brotavam em suas líricas de amor e ele as destinava às damas que lhe enchiam o coração de candura, não as utilizava apenas para criar uma imagem vívida da beleza dessas mulheres, mas estavam diretamente relacionadas à cor da pele, ou seja, mulheres brancas. Se às brancas, Gregório destilava ternos sentimentos, às negras guardava todo seu fel misturado a uma lascívia que no fim deixava-o repugnado consigo mesmo. Seus versos sobre a mulher negra são como navalhas que cortam a sangue frio o peito de quem – hoje – os leem. Em “Anatomia horrorosa que faz de huma negra chamada Maria Viegas” Boca do Inferno reprova a conduta de Maria Viegas, julga-a indecente, sem valor e diz: “ qual é a causa, que te move, a quereres, que te prove todo o homem, a quem te entregas? (...) tendo um vaso vaganau (...) que afirma toda a pessoa que o fornicou já, que enjoa por feder a bacalhau”.


Os versos acima são tão constrangedores e o desapreço à mulher negra por parte de Gregório é tão evidente que qualquer análise será simplista. No entanto, o que é importante ser remarcado aqui é que essa visão da mulher negra faz parte de uma concepção da época em que viveu Gregório. Uma concepção que veio importada da Europa e que foi difundida também na literatura Brasileira durante vários anos. A partir dessa leitura, qual era lugar então das negras na visão de Gregório? Era esta: sexo impuro; desejo aliado à repugnância da cor e da raça negra. Às negras era destinada toda vontade de se realizar práticas sexuais tidas como impuras ou fora dos moldes do que era aceitável no matrimônio abençoado pela Igreja Católica no século XVII. Portanto, para as brancas a idealização, o divino e o belo. Para as negras o feio; o imoral; o indecente; o indecoroso; a desonra e a humilhação.



Na leitura do último poema intitulado: “Huma graciosa mulata filha de outra chamada Maricotta com quem o poeta se tinha divertido, e chamava ao filho do poeta seu marido”, vê-se que os versos de Gregórios sobre a mulata são bem menos agressivos do que os que ele destinou a uma mulher com a cor da pele mais escura. Ele segue dizendo: “eu não vi Mulata mais linda, que me desse tanto abalo”. Para a mulata o poeta dedicava versos mais brandos no sentido sexual e satírico, louvava sua beleza relacionando-a a luxúria. Muitos estudiosos daquela época e críticos literários abordavam questões concernentes a uma “divisão de cores”, ou melhor, uma hierarquia étnica. Vê-se que Gregório, assim como seus contemporâneos viam nessa divisão uma diferença que não era apenas fenotípica, mas que era também social no sentido de quanto mais próxima da cor branca, menos inferior e repudiada era a mulher do século XVII.



Após refletir muito sobre os versos de Gregório, analisar textos de mulheres que falam sobre misoginia, sexismo, patriarcado e machismo. Desejei escrever sobre isso porque tudo o que tinha ouvido falar sobre Gregório em minha época de escola e, até mesmo em algumas disciplinas no próprio curso de Letras, era que ele foi um dos mais importantes nomes do Barroco Brasileiro. Suas sátiras, assim como suas críticas políticas, líricas religiosas e versos pornográficos sempre foram amplamente divulgados, mas nunca havia ouvido falar desta sua faceta altamente racista! Acredito que meus professores e professoras de literatura – não todos – sempre conheceram esse lado do Gregório – que aqui mais cabe chamá-lo de Boca do Inferno mesmo! – no entanto preferiram abster-se de temas polêmicos para seguirem na bonança dos versos mais “agradáveis” do poeta.

Sobre as questões das representações femininas na literatura ainda há muito que se discutir, mas, julgo ser de extrema importância que análises mais críticas e feitas por nós – mulheres – continuem a ser realizadas! Que possamos juntas desconstruir visões errôneas ou que de alguma forma perpetuam pensamentos hegemônicas sobre nós. Que as facetas obscuras, horríveis e desrespeitosas de escritos sobre nós sejam sempre relevantes nos estudos sobre a literatura. Principalmente porque ao nos depararmos com estes textos de épocas específicas entramos em contato não apenas com a cultura escrita de um lugar, mas com as concepções de mundo e sociedade vigentes.



Ao longo dos anos percebemos que na literatura Brasileira e mundial as mulheres sempre tiveram papeis de destaque. Contudo, com polarizações muito bem delimitadas, ou seja, representavam-se mulheres dentro dos moldes tidos como ideais ou representavam-se aquelas que estavam totalmente fora deles. Claro que os ideais estavam sempre de acordo com o imaginário masculino! Gregório foi apenas um dos inúmeros escritores que de alguma forma já representaram as mulheres em termos misóginos e sexistas. Contudo, se olharmos sempre com muita atenção para vários outros, veremos a recorrência de inúmeros preconceitos e significados dados ao sexo feminino que corroboram até hoje para a formação do conceito comum do que é ser mulher – seja ela branca; negra; índia; trans, dentre outras. Os escritos sobre nós ultrapassam questões étnicas e, de alguma forma, contribuem para a nossa construção psicológica; intelectual; social; cultural e histórica na sociedade. Por isso é urgente que nossas visões, (re) leituras e ressignificações nos meio literários – e em outros também – sejam sempre expostas e debatidas.


Texto por: Samya Tirza Barbosa Teixeira


Graduanda do 6º semestre do curso de Licenciatura Plena em Letras Português-Francês na Universidade Federal do Amapá- UNIFAP. Atua também como pesquisadora e atualmente, é bolsista de iniciação científica, na modalidade PIBIC, vinculada ao Núcleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Linguística Aplicada (NEPLA/CNPq - UNIFAP).


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